“Com a falta de água, aparelhos recolhem os mijos saudáveis numa caixa central, onde se procede à reciclagem. Há mistura, tratamento químico intenso, filtragem, purificação, refinamento, transformação. A urina retorna branca, pura, sem cheiro, esterilizada. Dizem que dá para beber”.
Esta poderia ser uma frase real, sobre uma nova tecnologia que transforma urina em água. Aliás, este tipo de máquina até já existe. No entanto, ela foi extraída de um livro de ficção. Escrito por Ignácio de Loyola Brandão, Não verás país nenhum mostra um Brasil devastado pelo desmatamento, pela seca extrema e por um regime opressor.
O livro foi lançado apenas dois anos depois do termo “mudanças climáticas” ter sido usado pela primeira vez em um estudo da Nasa, o que demonstra como a ação humana sobre o meio ambiente já ocupava o imaginário dos escritores há um bom tempo.
Hoje, a ficção que trata das mudanças climáticas e suas implicações tem até um termo próprio. Chama-se ficção climática, ou cli-fi para os íntimos. Considerada um subgênero da ficção científica, a ficção climática não retrata apenas um cenário distópico, dramatizando as catástrofes, mas se baseia em acontecimentos reais e imediatos para mostrar as injustiças ambientais e as desigualdades provocadas por estes cenários.
Sem dúvidas, estas obras não carregam um rigor científico ou o caráter jornalístico, muito menos têm função educativa. Mas podem ajudar os leitores a olharem para a realidade que os cerca, descortinando um cenário que eles sequer tinham imaginado. Além disso, a literatura pode, sem dúvidas, despertar o senso crítico, a curiosidade, a reflexão. Como escreveu Washington Novaes, jornalista especializado em meio ambiente, no prefácio de Não verás, “Há quem diga que os artistas são uma espécie de antena da raça. E são mesmo – por sua capacidade de antever, enxergar muito antes que os simples mortais, graças a sua sensibilidade aguda. E a um dom que os faz ser ouvidos”.
Quem sabe com mais este elemento em mãos o ser humano não é capaz de frear a própria ação destrutiva e tornar a ficção climática uma realidade que existe apenas na mente dos mais criativos escritores?